Pois bem.
Nunca pensei em mim como um idealista. Agradam-me as frivolidades e os disparates. Abomino a simplicidade procurada e a luxúria disfarçada. Numa fase espiritual descobri que adorava os sete do catolicismo, o carnal do Budismo, o proibido do muçulmano. As cara-metade não faziam sentido. Muito menos o pecado original. Respeitava estes princípios apenas porque sim.
Revia-me nos heróis infinitos do prazer. Gostava dos carros do Vaillant, das refeições do Obélix, da permissividade do Miller e da poesia carnal de Neruda. Contradizia-me com Rampa, mestre da ocidentalização tibetana, o destino incompreendido de Rimbaud e o lirismo trágico de Ulisses. Assumi as contradições como partes (mas não do bem ou do mal). O errado arranjou objecções sustentadas no Humanismo. O desejo de crescer nos épicos renascentistas. Um optimista, portanto. Acreditava na intuição sincera de que não eram os homens que definiam a moral, mas sim o meio. Para os inflamados, escudei-me em Wilde, Eça e Joyce, apontando-os como ídolos à posteriori. Quando os conversadores mo permitiam, falava do amor entre Cristo e Madalena, a visão social de Adriano ou a sabedoria popular e contida de Agostinho. Em ocasiões de índole diplomática calava-me. Confiava nas expressões corporais para minha defesa. De que vale o argumento a quem não o compreende? Estava certo de que os silêncios também eram cúmplices na aprendizagem e, confesso, preferia escutar o interior. Senti-me muitas vezes só, como todos. É a vida. Procuro em “muletas” do passado a sabedoria ou, pelo menos, respostas para os meus tormentos diários. Quando me afasto, corpo ou mente, procuro apenas mais uma. Com isso nasço, aprendo.
Já não me apetecem os carros do Vaillant, mas continuo a apreciar-lhe o bom gosto. Não invejo o apetite do Obélix, mas a sua boa disposição. E de Agostinho gostaria de ter o equilíbrio. Não me revejo em Rimbaud – é demasiado trágico. Joyce, demasiado conflituoso. Gostaria de encarnar em cada um deles por cada dia da minha vida. E de acordar, abrir a mala do Sport Billy e escolher. Numa segunda-feira entro pelo cais e, a bordo do Nautillus, procuro a Atlântida descrita por Platão. Encontro o Corto com Hemingway. Bebo com eles, num porto sem nome. Vou a Viena e viajo no tempo com Einstein. Pelo caminho paro na Enterprise e, num remake do Blade Runner, vejo o Sistema Solar a adormecer. Depois janto no Olimpo, onde Zeus, ao lado de Cristo, me descreve os benefícios do azeite. Baco, interveniente comme d’habitude, dá-me a provar a sua melhor colheita. Então, ao sinal de Marte, entra Vénus, bela, rodeada por um “verde Mallick”, apenas com uma túnica, daquelas que só a imaginação consegue desenhar. A um canto, Camões pisca o olho bom a Chopin e nós, envoltos numa melodia íntima e infinita, dançamos. Tudo se esfuma e olhos nos olhos, perdemo-nos na imensidão das almas. E agora talvez acredite que se ame. De sempre e para sempre.